CenaRio: a Mureta da Urca
Manual da arte de jogar pedrinhas na Baía de Guanabara sob a molecagem do horizonte.
As últimas luzes do dia refletem o vidro alaranjado da garrafa de cerveja colada a minha empadinha de camarão. Não estou aqui. Estou em outro mundo. Um mundo com cheiro de brisa de fim de tarde, cheiro de barco de pescador, som de beira de estrada de terra úmida; no Rio de Janeiro.
Quem senta à mureta da Urca é involuntariamente evocado à condição de personagem de um quadro impressionista, ainda que com um leve tiritar de buzina no plano de fundo. Plano de fundo, de frente, de lado, geral; enquadrado pela película de um entreposto sensorial urbano, o SPA da alma carioca.
Mas me distraio com os peixes, jogando pedrinhas na água. Não os incomodo, eu acho; eles continuam saltitando em cada pedrinha que afunda. Na Mureta da Urca, os peixes dão bom dia.
Sou um peixe dentro d água. Diluído. Universalmente solvido ante os destemperos de uma metrópole que me encara. Mas faço que não noto.
Enquanto a marola batuca na pedra, a queda das folhas no calçadão faz… barulho. Barulho que ressoa ainda mais o silêncio. Silêncio de som de vento que despenteia de leve o cabelo: quem ouve de lá, se ouve ao longe.
E haja íris para dilatar tanta molecagem do horizonte, que se alarga em cor de floresta, despejando-se como espelho nas águas da baía. Baía, licença nossa, do Rio. Mês qualquer que seja.
Desconfiada, a cidade tosse. Quer atenção. É Sacana: quer apressar o dispensável, solucionar o insolúvel, enfim, toda sorte de mirabolices para encasquetar minha paz.
A cidade não para. E é até jeitosa, mas tem lá as suas olheiras que não dá para disfarçar. Eu reconheço o buzinaço de longe. Foi uma freada brusca do 409 na Voluntários. O motorista, irritado com as obras do cabeamento da provedora de internet, ficou puto com o infeliz que carregava galões de água na garupa alargada da bicicleta, ocupando mais de meia-pista!
Nada contra Botafogo. Cinemas, botecos, centros culturais, cafés, bistrôs modernosos, aquelas padarias centenárias… Ainda tem o metrô.. Mas ainda que haja Sorocabas, Palmeiras ou a Paulo Barreto, Botafogo não difere da Passagem de qualquer Copa. Botafogo é cidade. Apita sinal de guarda, fala alto, queima carbono.
A Mureta da Urca só queima quimeras. Quimeras do que um dia já foi. E que de tanto ir, já se perdeu... Num tempo e dimensão únicos. Um engano à tagarelice dominante, um elo encontrado – ao menos para quem se deixa achar.
Sou o penetra da Urca. Nunca morei lá. E como a rapadura não é mole, também não fico alimentando fantasias de acordar amanhã – sob o Pão de Açúcar – abrindo uma daquelas janelas de casa de campo, ao lado de um Ipê Amarelo com casinha de João de Barros.
Ainda assim, aquele pedaço de terra é mesmo o quintal da minha casa. Foi lá sempre que matei as aulas da vida. Nunca paguei aluguel, condomínio ou taxa que fosse, mas me sinto ao menos coproprietário, por usucapião mesmo.
E a cidade, então, engasga. Desiste de me tentar. É inútil. Vence a tudo, mas não à mureta da Urca. Mais ainda depois da despedida das gaivotas. “Revoaram-se” num voo em V rumo ao poente do oeste. De manhã fora o contrário. Vieram para o “mercado de peixes” da Guanabara.
Uma canoa, ao longe, rema meus olhos a um tom abóbora que esquenta o céu. Iça velas e se esconde no horizonte.
O Cristo me olha ao lado do pôr-do-sol. Não há uma imperfeição no mundo.
🗺 Mapeando a Mureta
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👁🗨 A Urca não existia
Até o final do século XIX, a Urca sequer existia, muito menos a bendita mureta. Isso porque as águas da baía de Guanabara banhavam diretamente as rochas do Pão de Açúcar. O bairro nasceu quase que por completo, sobre um aterro, erguido com as areias do mar, na década de 20. Conheça a história do bairro!
🍻 O Bar Urca
Fundado em 1939, o Bar Urca é, sem dúvida, um dos maiores ícones dessa bela orlinha e abre suas portas desde os tempos do Cassino da Urca. Com a mureta à beira-mar, foi lá que a bendita começou a ser usada como balcão ao ar livre, para anos depois virar um reduto turístico e ganhar fama internacional. Dá só uma lida aqui!
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Cara, antes de tudo, que crônica incrível, maravilhosa! Me deu vontade de ir pro Rio agora mesmo e conhecer a mureta da Urca! Já me inscrevi e vou acompanhar a sua newsletter :)) E muito obrigado por compartilhar a última edição da minha também. Abração!